top of page

O conto das criaturas de Carne

  • Akasuma Lean Vicci em parceria com Daniel
  • 28 de nov. de 2015
  • 6 min de leitura

Cruzeiro do Sul – AC, 28 de novembro de 2015

Aqui quem vos fala é o Dr. Carlos Anímico, sou psicólogo, formado na grande faculdade chamada vida e escrevo a quem possa interessar:


O conto que desejo transcorrer nessa carta, que por sinal é minha ultima publicação em vida, decorre sobre o humanismo. Antes de tudo devo salientar que sou humanista convicto e sou um pouco suspeito a falar sobre esse assunto.


Vale fazer uma ressalva quanto ao significado do termo – HUMANISMO – movimento intelectual difundido na Europa durante a Renascença e inspirado na civilização greco-romana, que valorizava um saber crítico voltado para um maior conhecimento do homem e uma cultura capaz de desenvolver as potencialidades da condição humana.


O tão aguardado conto das criaturas de carne traduz um pouco o que o movimento representou e ainda representa em minha vida. Irei fazer uma breve viagem a minha infância, de quando ainda era coroinha. Há exatos sessenta e cinco anos me afastei da religião católica e adentrei de vez na racionalidade formadora do animal chamado homem. Devo dizer que meu desejo de estudar a mente surgiu ainda quando tinha 14 anos (hoje me encontro com meus 80 já beirando a outra vida, se por ventura ela realmente existir) foi graças a uma cena que presenciei dentro da Igreja que me fez questionar os tão belos dogmas da fé, como muitos consideram.


Numa bela manhã de domingo, quando ainda estavam sendo finalizados os preparativos para a solenidade de Nossa Senhora, a cena que mudaria minha juventude e possivelmente minha vida inteira aconteceu. Uma senhora da comunidade rural veio tomar a benção do senhor padre, ao chegar perto do representante de Cristo na Terra, ela foi tratada como uma barata. Ignorada e subjugada devido a suas aparências. Nunca uma roupa disse tanto sobre uma pessoa. Mas a cena não revelou a pobreza que a senhora sofria, e sim, o fato do poder ter subido tanto a cabeça do padre a ponto de se equiparar a Deus, tornando-se um ser intocável.


Foi então que despertei o interesse em estudar como o poder proporciona a nós simples seres de carne a esquecermos dos humanos que somos e que a nossa volta existem mais humanos e muitos com o intelecto acima de sua compreensão e status social.


Desse dia em diante duvidei das pregações do senhor padre e com o passar do tempo fui questionando a religião que outrora foi criada para nos unir enquanto irmãos, humanos e filhos de um deus que supostamente é afetuoso e misericordioso. Hoje sou ateu, e não me arrependo. Ao sair das sombras modeladoras da religião pude começar aos meus 15 anos minha jornada sobre o estudo da mente humana enquanto instrumento do corpo.


Peregrinei por longos vinte anos país adentro até fincar residência no Nordeste. Estudei como as pessoas da Paraíba, Pernambuco e Ceará levavam suas vidas em meio à tão terrível seca e como utilizavam de suas mentes para saírem de problemas e situações tão desumanas ao qual estavam expostas.


Nunca tinha presenciado humanos tão fortes tanto em corpo quanto em mente! Da falta de água conseguiam produzir cantos para alegrarem as noites turvas e sombrias. Com os sorrisos nos rostos traziam a felicidade aos que já aguardavam seus últimos momentos. Nunca perderam suas esperanças e suas fés. Foi nesse momento que percebi que a fé não se dava apenas em divindades religiosas, mas no fato de acreditarmos ao extremo em algo e depositar tudo para que aquilo pudesse acontecer.


Quando estive para partir novamente na minha caminhada lembrei-me de algo dito por minha avó – Ruth (negra disposta e guerreira, sustentou sozinha seus 8 filhos, pois ficastes viúva quando o último deles, meu pai, nasceu) – ela era minha confidente, chorei muito ao saber que tinha falecido um ano após minha saída de casa.


“Não tem como estudar só o fruto, sem saber da semente. O mesmo é com a psicologia. Não dá pra saber do corpo, sem entender da mente e, não dá pra saber a resposta da mente, sem saber a ação do corpo”


Essas foram as últimas palavras ditas por ela. O sonho dela era torna-se psicóloga e ajudar muitas pessoas. Creio que herdei essa vontade da minha heroína.


Viajei muito sobre uma parte do meu passado, voltemos ao meu presente. Atualmente conclui meu derradeiro livro, A concórdia da mente e do corpo, nele eu destrinchei todos os ensinamentos de minha avó para comigo, fazendo análises aos meus estudos de peregrinação. Foi algo prazeroso e que tive muito orgulho. Depois de longos e cansados 65 anos, e depois de ter adquirido um tumor no cérebro devido aos longos estresses que passei durante minha jornada, fora as vezes que ultrapassei meus limites mentais para entender situações surreais como a da mãe que pressionou tanto o filho psicologicamente devido o fato de ele ser gay que o pobrezinho cometeu suicídio, triste cena. Um jovem de pouco mais de 14 anos, com um lençol amarrado no pescoço e pendurado na janela de seu quarto. Lembrei-me de Tiradentes, morto por lutar pelo que acreditava.


Agora que o conto realmente irá começar...


Faz pouco mais de seis meses desde que meus estudos sobre a mente chegaram ao fim. Estive até ontem fazendo minhas anotações, observações e relatórios sobre todos os pontos que passei e vivi. Realmente a mente humana é algo surreal, mesmo não conseguindo usar ela por completo. O que fazemos com o pouco já é de se assustar.


Antes que eu cometa minha tão aguardada eutanásia, pois já não encontro mais sentido nessa realidade, quero compartilhar com vocês o resultado de precisos sessenta e cinco anos de trabalho. E já deixo o parecer que minhas relíquias e preciosidades – meus livros e demais objetos de trabalho – ficarão de herança para minha sobrinha Alice, já que não possuo o meu tão desejado filho(a) uma vez que minha esposa falecera de um acidente de carro devido a um descuido meu.


Era uma tarde chuvosa, o céu estava mais escuro que a noite e a neblina tomava conta dos asfalto, na subida de uma serra acabei tendo uma forte dor de cabeça devido ao tumor que mantinha em segredo até aquele dia, perdi o controle do meu uno azul e então o carro deslizou para fora do trajeto. Descemos a serra capotando e minha mulher fora lançada do veículo. A minha amada morta pelas minhas mãos, seu sangue banha minhas lembranças e seu corpo esfacelado atormentam até hoje minhas noites.

Depois de revelar a vocês meus caros leitoras precisei fazer uma pausa na escrita desta carta, pois já não consegui segurar minha caneta e muito menos olhar para o papel. Ainda me culpo pela morte da minha amada.


Vamos retomar o fluxo que pretendi apresentar a todos desde o inicio desta obra derradeira.


A história sobre as criaturas de carne foi mais uma das minhas frustrações durante meus estudos. Tentei entender o corpo humano para então compreender sua mente. Esses foram os piores dois anos de minha vida, me envolvi com uma senhora que praticava feitiçarias, morei com um adepto ao espiritismo e fui para a cama com um homem que afirmava não ser deste tempo, até hoje me pergunto o porquê dele falar aquilo com tamanha convicção. Mas enfim, meu corpo foi assolado pelas diferentes realidades que o expus e minha mente foi destroçada de tal forma que passei três meses internado em um hospital que mais parecia um sanatório. Agora entendi um pouco o que de fato minha avó queria me ensinar, se quisermos entender a mente precisamos primeiro saber conduzir os desejos do corpo e ao mesmo tempo entende-los. Sem a compreensão do homem animal jamais conseguiremos compreender o racional.


Sinto inveja dos pensadores europeus no tempo da Renascença, propuseram o humanismo a fim do homem compreender sua potencialidade e hoje posso dizer que não consegui oferecer como resposta o que tanto defenderam enquanto vida. Fui derrotado pelos meu 65 anos de estudos e trabalhos para hoje aos 80 anos saber que de nada valeu a pena a busca para compreender o homem em sua real essência.


Não se pode teorizar um ser imprevisível e que faz tudo diferente do proposto pelo sistema universal. Somos mesmo na terceira idade, crianças rebeldes que desobedecem seus pais, que hoje represento pelo universo.


Eu não consegui encontrar a resposta para o meu humanismo, deixei-me ser levado pelos desejos apenas da carne e por muitas vezes larguei de mão minha racionalidade, esquecendo que além de animal sou ser pensando e capaz de exercer a perfectibilidade. Cansei de tudo!

Nesse tempo restante aproveitei para usufruir de tudo aquilo que me privei devido as minhas peregrinações. E agora já quase para bater as botas, é com muita alegria e satisfação que digo...


É chegada a hora! Tomarei minha última e a mais saborosa xícara de café feita com os mais nobres grãos já colhidos, fumarei o primeiro e o último cigarro de maconha (coisa que passei a vida inteira no desejo de saber qual era a sensação) e por fim, tomarei essa pequena dose de cianeto de potássio que está nesse exato momento à minha frente.


Deixo aqui meus mais sinceros agradecimentos a todos que leram essa última publicação feita por esse tão perdido e tão encontrado ser humano.

Mesmo tendo desistido da essência de minha jornada eu vos imploro não deixem de buscar seus humanismos. Minha vida pregou muitas peças, mas garanto que na de vocês pessoas tão bem estruturadas conseguirão fazer aquilo que não consegui.


Dia 28 de novembro desse ano corrente, aqui jaz Dr. Carlos Anímico deitado no divã da doutora morte. Minha velha amiga que acolho com graça e felicidade.


PS: Para a mente mais bem estruturada a morte é apenas um começo disfarçado de fim.

 
 
 

Comentários


© 2015 por Maurício Rosendo Leandro dos Santos.

Orgulhosamente criado com Wix.com

  • Facebook B&W
  • Instagram - Black Circle
  • Google+ B&W
  • Twitter - Black Circle
bottom of page